Razão e fé, presciência e tricotomismo: três respostas

Publicado antes no RVJ…

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Estou já há algum tempo devendo algumas respostas… São três assuntos desconexos e eu poderia fazer três postagens separadas. Mas uma postagem única me auxilia em um tríplice objetivo.

O primeiro deles é obviamente dar as respostas que devo. O segundo é tentar fazer com que estas respostas não sejam longas e por demais cansativas. O terceiro… Bem, o terceiro objetivo é melhor ser esclarecido no tempo devido…

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Razão e fé

Inicio pela questão que, talvez, seja a mais difícil de responder. Surpreendentemente, porém, terei a resposta mais rápida. Quando da postagem De certo racionalismo, o Helder me propôs o desafio (Helder, as duas outras questões eu deixo em aberto para, quem sabe, nova postagem):

Uma vez que tenhamos atingido os limites da razão...o que fazer? Dar uma de Kierkegaard e saltar no escuro? Calar-se e reconhecer a ignorância?

Não é assim que vejo. A razão tem seus limites, mas extrapolá-la como se fosse impossível usá-la depois de certo ponto é mesmo um irracionalismo que não me agrada (e provavelmente concordo com aqueles racionalistas neste ponto).

A razão não prescinde da fé desde o começo. Há uma dependência tal que, se quisermos mesmo fazer uma separação entre elas no processo de pensar, talvez devamos fazer uma tríplice divisão: fé-razão-fé. Temos todos nossos pressupostos, que nos permitem toda razão, que nos leva a mais pontos de fé…

Mas não posso dizer senão que tudo isso é sempre uma e a mesma ação. É impossível separar de fato razão e fé. Pelo que minha resposta mais direta seria: usamos fé e razão concomitantemente, quer nos pressupostos que temos, quer no que deles apreendemos, quer nos mistérios que restam.

Em relação à ignorância reconhecida, não é necessário calar-se quanto a ela. Ao contrário, este é sempre o princípio da sabedoria…

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Presciência

Em três textos, o Clóvis afirma a presciência de Deus: Presciência, certeza e predestinação, A presciência mata o livre-arbítrio? e Conhecidos de antemão. Em um deles e via chat nós “brigamos” por causa do termo. Pois eu não gosto dele.

E não gosto dele do mesmo jeito que não gosto de “livre-arbítrio”. Não é que os termos sejam ruins ou “errados” em si mesmos. Nem que sejam ruins para serem usados comumente. Mas são ruins como termos técnicos. Pois posso falar em livre-arbítrio sem pudor se elimino de liberdade a autonomia. E posso falar de presciência sem pudor se o “conhecer antes” for anterior ao tempo.

Também, que fique claro que meu não gostar de “presciência” não pode ser pelo termo bíblico equivalente. Nas palavras do Clóvis ao citar Rm 8.29-30:

O termo traduzido pela NVI como "conheceu de antemão" deriva de uma palavra grega (proginosko), que é formada por uma preposição que significa "antes de um certo ponto" e um verbo que significa "conhecer". Daí, conhecer de antemão.

Ora, felizes as traduções que mencionam um “conhecer de antemão”. Pois “presciência”, em nossa língua e sem maiores explicações, remete demais ao tempo, chegando mesmo a ter ares de adivinhação, como em “prognóstico” ou “previsão”. E o próprio fato de termos que explicar demais o termo me faz não gostar dele. É certo também que “conhecer de antemão” terá a conotação de tempo para quem assim insiste em pensar. Mas o direcionamento para a eternidade é claro.

Falando em texto bíblico, é emblemático o texto grego em I Pe 1.20. Nele se afirma que Cristo foi "conhecido antes" "antes da fundação do mundo". Precisa mais para mostrar que o “conhecer antes” é um ato na eternidade? E, por ser eterno, é um ato único, junto com todo o decreto divino, o que deveria redimir o termo em português, além de torná-lo idêntico a “ciência” ou “onisciência”. Afinal, Deus simplesmente conhece e seu conhecimento é total, pleno e exaustivo. [1]

Mas não é só por remeter ao tempo que não gosto do termo. Ou melhor, justamente por remeter ao tempo, o termo é revelador de uma cosmovisão que não convém. Revela que os pressupostos mais profundos estão fora de foco. Pois partimos da eternidade ou do tempo? De Deus ou do homem?

É verdade que, como afirma Calvino, o conhecimento de Deus e do homem concorrem, sendo difícil dizer qual vem primeiro e qual ao outro origina. Mas isso é um foco diferente do que o que estou dizendo aqui. Eu falo do ponto de referência, e este deve ser sempre o Logos.

É por isto que, ainda que use de quando em quando termos como "presciência" ou mesmo "livre-arbítrio", faço-o com moderação, cuidado e, com toda honestidade, não gosto deles. [2]

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Tricotomismo

Em certo ponto da postagem Homilia (esboços) 1 eu fiz, a propósito do texto em Lc 20.52, as relações: sabedoria com alma, estatura com corpo e graça com espírito. Isto levou o Zwinglio a me perguntar se sou tricotomista.

A pergunta é mais interessante (ao menos a mim) e de longa resposta do que parece de início. Sim, já fui tricotomista. Mas minha posição hoje é: não exatamente. Como assim? Tentarei explicar.

Antes de continuar, no entanto, aquiesço à ortodoxia que afirma que a Palavra muitas vezes usa os termos “alma” e “espírito” um pelo outro, e isto majoritariamente. Isto, no entanto, não me leva a um dicotomismo. E não é simplesmente porque alguns versos nos sugerem tricotomismo.

Na verdade, o que é absolutamente claro pelo texto bíblico é que há um elemento material e um espiritual no homem. E é apenas sugerido que o elemento espiritual seja duplo. Uma sugestão bastante forte, eu diria. Porém, novamente, isto não me leva ao tricotomismo.

Minha posição é a de um “monismo tricotômico”, ou nas palavras de quem me alertou para a ideia [3]: uma “unidade condicional”. O homem pode ter dois elementos, o material e o espiritual, seja este último um alma e espírito, seja um alma ou espírito, mas o homem só é homem se estes elementos estão juntos.

Um corpo sem alma/espírito é um cadáver, e quem já viu um sabe que aquela matéria já não pode ser identificada com a pessoa que um dia foi. Um elemento espiritual é, talvez, um fantasma (será que deveríamos tecer considerações sobre o estado intermediário, se houver?), o que me enche de dúvidas, mas homem mesmo por certo sei que não. Assim, um certo monismo se faz necessário. Um homem é um homem, indivisível em seus elementos material e espiritual.

Mas é possível “dividi-lo” em partes? Sim, do mesmo modo que dizemos que o homem é razão, emoção e vontade e estas faculdades andam inseparadas mesmo no louco, no retardado, no imoral ou no doente qualquer que a depravação total gere. Sim, é deste mesmo modo que os elementos material e espiritual podem ser atribuídos ao homem.

Se assim é, entretanto, e se há uma sugestão de divisão dentro do elemento espiritual, sem que deixe de anuir ao discurso dicotomista, restrição feita ao necessário monismo, não vejo porque não falar em corpo, alma e espírito. Ao menos didaticamente. Mas há um motivo adicional…

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O que me leva ao meu terceiro objetivo. [4]

Há quem pense em Deus como um grande-moralista-estraga-prazeres-cósmico. Eu não posso ver, mesmo em meio às tragédias humanas, senão bom humor e certa ironia nas marcas que a Trindade deixa de Si em sua criação. Parece haver algo com o número três…

Três objetivos… Três temas… Três respostas… Uma postagem! Claro, estas não são as marcas do Deus Triuno. Mas mostram que meu terceiro objetivo transcende o texto que fiz até agora. Agora, observe…

O homem como razão, emoção e vontade e, o motivo adicional, o homem como corpo, alma e espírito. O esquema criação-queda-redenção. Os estados da matéria. As dimensões que ordinariamente apreendemos. E não é curioso que seja em três apenas um homem? Há apenas uma história de salvação, a mesma matéria, a mesma realidade apreendida. Até mesmo há a tríplice divisão do mesmo pensar a que me referi há pouco.

Não, não posso ver nisso mera coincidência. Vejo marcas indeléveis de um Deus que é um e três. Há certa bem humorada Poesia e Beleza! Num exacerbado antropomorfismo, vejo-O a sorrir meio de lado ao deixar Suas pegadas. Vejo-O com um imenso sorriso de prazer quando um dos Seus eleitos as encontra.  

Mas, ora, cinco pontos para mostrar três? Dizem-nos que uma boa homilia tem três pontos. Some-se introdução e conclusão e temos cinco pontos para mostrar três e, se boa homilia mesmo, apontar ao Um que é Três. Humm, isso não leva a algo além? Talvez seja por isso que temos os Cinco Solas… Os Cinco Pontos[5]… Mais uma bem humorada Poesia!

SOLI DEO GLORIA

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[1] O “conhecimento exaustivo” leva muitos a afirmarem planos A, B e N na mente de Deus. Isto é algo completamente absurdo ao se perceber os atos de Deus como únicos desde a eternidade.
[2] Não gosto do termo, mas também não faço caso por meu não gostar. Continuarei a considerá-lo um termo técnico ruim e a própria contenda entre calvinistas e arminianos e a diferença de entendimento sobre o termo entre eles são provas do meu ponto. Mas quem quiser usá-lo, que o use. E explique-o.
[3] Erickson, M.J. Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1997.
[4] É claro que encerro este texto com uma grande brincadeira. Não, porém, que eu não creia no que eu disse ou que o tenha feito apenas para brincar (e, quem sabe, fazer pequena provocação). Eu creio num Deus bem humorado. Eu creio na Poesia e na Beleza. E creio que Suas marcas façam parte deste contexto de humor e Beleza. Apenas que não farei caso de defender este discurso. Quem quiser que me considere blasfemo. Mas sei que há quem veja a mesma Poesia…
[5] Quanto aos Cinco Pontos, isso não passa de uma referência ao Calvinismo que não o esgota. Há muitos mais pontos no Calvinismo que aqueles que o defenderam em certo tempo na história.

4 comentários:

Leonardo Bruno Galdino disse...

Roberto,

Quanto à questão do tricotomismo/dicotomismo, fico com a sugestão de Hoekema: a de que somos uma "unidade psicossomática".

Quanto à questão da Poesia, que bela sacada a sua, hein?! Também enxergo cada ponto da nossa existência como uma bela obra de arte do Artista-Mor. E, ainda que haja certas semelhanças "curiosas" nos fatos que nos cercam, também entendo que tudo acaba (ou, acabará) convergindo para o fim último de todas as coisas: a Glória de Deus. Portanto, Soli Deo Gloria!

Abraços!

P.S.: Quanto a esse último ponto, sugiro a música "O Tapaceiro", de Stenio Marcius (também interpretada por João Alexandre).

Roberto Vargas Jr. disse...

Leo,
Hoekema foi citado pelo Helder no RVJ. Digo a você o mesmo que já disse a ele: uma vez que se afirme o necessário monismo, uma "unidade psicossomática" ou uma "unidade pneumopsicossomática" será apenas uma escolha de conveniência. Ao longo do debate por lá tenho usado muito mais de um "monismo dicotômico" que do declarado "monismo tricotômico".
Quanto à sacada, obrigado! Eu estava certo em supor que não estou sozinho em ver Poesia, não?
NEle,
Roberto
PS: Conheço a música e a recomendo juntamente consigo.

Clóvis Gonçalves disse...

Roberto,

Estou lendo (comecei na última viagem, de ônibus) G. K. Chesterton, O Homem Eterno. Embora o estilo do autor peça uma leitura rápida, pelo prazer que proporciona, as idéias pedem uma leitura compassada e pensada. O que fazer? No meu caso, duas leituras. Uma por diversão, outra (ou outras) por obrigação, embora esta devesse vir antes daquela, na opinião de minha avó.

Digo isso a propósito de Chesterton, mas digo também a propósito de seu terceiro ponto, acima. E você sabe por que Chesterton foi lembrado aqui.

Clóvis

Roberto Vargas Jr. disse...

Clóvis, caro confrade!
Desculpe a resposta tão tardia a um comentário tão cortês. Pensava que não iria além de frustrá-lo com um ponto 3 tão curto e repetitivo. Mas se a lembrança ainda levou a Chesterton, não posso ficar senão feliz!
Aliás, também estou lendo este "O homem eterno". Bem devagar... rsrsrs
NEle,
Roberto

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